19 outubro 2005

28. Extra Tour Mongolia

00. Esclarecimentos aos leitores
O recurso a uma "agência de viagens" não teve como intenção simplificar-nos a vida: o nosso querido UMM com o servo freio avariado teve de ficar em Portugal; a Jota andou a aprender Russo e não lhe chegou o tempo para o Mongol. Assim sendo, para irmos tentar a sorte de partilhar um ger (tenda circular) com uma verdadeira família nómada Mongol, precisamos de alugar um 4x4 (com condutor) e uma guia. De cómoda ou fácil, pouco ou nada teve esta nossa viagem. Sem recorrer a uma agência, de Ulaan Baatar teríamos saído directamente para Pequim.

01. Desilusão: mas quais noites em familia?
O trajecto dos nossos primeiro e segundo dias foi em comum com o tal alemão que nos falou da Extra Tour. Em vez de 4 éramos 7 pessoas e para grupos destes está mais do que desenvolvido um alojamento em gers que determinadas famílias têm montados apenas para-turista-dormir. As famílias negociadoras dormem ao lado, no seu ger ou numa casa (já que este negócio se pode encontrar em cidades onde, em quintais cercados se montam os gers). Bem, neste grupo de 7 havia dois motoristas e dois guias cheios de vontade de conviver entre si, comer carne e beber vodka a noite toda. Nós, os três turistas, entre o assistir e o entender o que afinal se passava ficámos em duas noites com o mestrado em: "Como se divertem os condutores e os guias enquanto os turistas dormem no ger do lado".


preparando o primeiro ger para-turista-dormir; a segunda noite de festa dos Motoristas e Guias; o campo de geres-urbanos

02. Desilusão: burla!
A desilusão de duas noites tão diferentes das que procurávamos juntou-se uma outra: a guia intérprete que levamos revelou-se uma bela fraude!
Vinte e sete anos de idade, 24 vividos em Ulaan Baator, 3 passados em Novassibirsk na Rússia; Inglês: parco; sobre a Mongólia: pouco conhecimento e menor interesse; princípios de educação europeus (e mundiais): nicles.
E nós? Nos sabíamos sobre o que ia acontecer quando as coisas aconteciam; traduções sobre palavras que nos eram dirigidas só passavam a inglês por pedido nosso; ouvimos como resposta uns quantos "I dont't know" acompanhado de ombros encolhidos (como os putos!) e outros tantos "ans" guturais.
O facto de os estrangeiros não saberem nada da língua Mongol levou ao desenvolvimento de uma manhã do condutor (e do guia). Fazemos o que eles querem e estão eles sempre à vontade para nos aplicarem as suas tangas: não há gers aqui! só ali - e no que há ali está um amigo condutor de outra agência... vai ser cá uma festa eh eh; aqui as famílias cobram 20.000 tugriks por noite; aqui não há cantinas para almoçar; não, à gruta grande não se vai porque agora sopram por lá uns ventos estranhos; vamos à cidade pôr gasolina - não vamos à cidade por gasolina (e acabamos na cidade a comprar pão).
Gerir o relacionamento durante estes setes dias foi tarefa levada a sério que, penso, trouxe alguma aprendizagem: nunca mais compro um guia sem inquirir primeiro!
Entre outras raridades desta guia fomos descobrindo que já tem um filho de cinco anos e que o dinheiro que faz com estas tours é para gastar nas prendas do aniversario da criança agora em Novembro. Habitualmente, da aulas de inglês ao secundário (!) excepto quando acompanha tours e telefona a dizer que esta doente ou até no hospital! Avisou-nos para termos cuidado com os assaltos em Ulaan Baatar mas ao mesmo tempo ofereceu-se para nos acompanhar ao mercado negro de artigos roubados onde "há de tudo e tão barato".
Enfim, estes foram pormenores que fomos descobrindo mas, se mais atentos, talvez pudéssemos ter desconfiado. Ora vejam: logo na primeira troca de palavras soubemos que a razão que a leva a ser guia é: "to improve my english" (!?!); e o seu nome é BULGAA que se lê Burlhcáá... Burlhá... Burlá...BURLA!


a "mãe" Bulgaa; afinal onde vamos hoje?; Bulgaa fumando

03. Magia de Buda?
À terceira noite Buda ajudou-nos.
Viajávamos já sem o grupo do alemão quando, ao pôr-do-sol, chegámos a mais uma pequena cidade. Era mau sinal, sinal de que íamos pernoitar no quintal de alguém com ger-para-turista-dormir. Mas a família conhecida ou tinha os gers cheios ou os gers não estavam preparados e assim sendo... tivemos de nos fazer ao caminho, afastarmo-nos da cidade e bater à porta de um ger que se assomasse a estrada. Era o nosso sonho a realizar-se!
Já com um nervosinho instalado, pela chegada do lusco-fusco, apareceu um conjunto de 3 gers aninhados junto a uma pequena elevação sobre um planalto. O preceito mandou o motorista sair para conversar. Seguiu-se-lhe a guia. Voltaram com ar algo intimidado: podíamos ficar mas tínhamos de dormir no chão porque dos 3 gers só o do meio tinha fogão para aquecer. Excelente!
Entrámos e ficámos a conhecer a família. Um pai (75 anos e rugas tostadas), a mãe (magra) e a filha (surda-muda). Tem mais meia dúzia de filhos nómadas que andam pela zona, os visitam, os auxiliam e fazem a transumância do gado. O casal e a filha vivem todo o ano neste mesmo lugar e passam o Inverno num barraco de madeira que construíram ali ao lado.
Ofereceram-nos arroz com batata e borrego aos pedacinhos (cozinhado no fogão central que caracteriza cada gers); chá mongol (chá salgado com leite); e ARUL (pedaços de leite de cabra coalhado e seco - por nos ficaram conhecidos como desafia-dentes... rijos rijos rijos). Depois de toda a loiça do jantar ter sido devidamente lavada em meio litro de água a filha deu corda 'a bateria e ficamos a ver na TV o filme, a telenovela e o debate (ora um ora outro ora outro!). Nem meia hora e apagava-se a luz. Deitados no chão adormecemos a ouvir uma calma e longa conversa entre o casal anfitrião.
Das seis noites da nossa viagem, três foram passadas com verdadeiras famílias nómadas. Esta foi a primeira. Ficam as fotos porque as palavras alongam-se.


menina mongol; a família da primeira noite; ordenhando as cabras


noite no ger com visualização das filmagens do dia; o casal que convidamos a convidar-nos para almoço; a família da ultima noite

04. Vamos a contas
Segue a listagem dos momentos duros:
- 7 dias sem água quente que corresse para além do bico da chaleira e até à tigela;
- 200 km em estrada de alcatrão bem retalhado + 1400 km sobre rastos + 200 km a abrir novos rastos;
- 7 dias de pó sobre tudo o que é corpo, tudo o que é roupa, calçado, tudo o que é mochilas;
- dormir no chão tem os seus encantos mas a mim doíam-me os ossos da bacia!;
- à noite arrefece em todo o lado, no deserto arrefece muito, nos gers com buraco no topo a descoberto para as estrelas... é preciso haver um cobertor sobre o saco-de-cama.
- 7 dias a beber chá mongol com leite de cabra, sete dias a comer arul, a bebericar do vodka (por nos próprios oferecido);
- 7 dias a ver os mongóis, para o almoço, a descarnar ossos de borrego; 7 dias a ver os mongóis, para o jantar, a cortar carne de borrego em cubinhos; 7 dias a ver os mongóis, para o pequeno-almoço, a juntar chá mongol aos restos da véspera e a beber aquilo tudo.


a trepidação perdura mesmo com os pés já pousados em terra

05. Resultado final
Tivemos de esperar pelo regresso a Ulaan Baatar para ter a certeza de que as desilusões do início se perderam completamente na maré-alta das boas experiências que tivemos.
Andámos durante 7 dias pelo meio do nada, num deserto surpreendente de montanhas, rochas, pequenos canyons com vales gelados, muitos camelos, muitas marmotas, um relance de uma manada de antílopes brancos, alguns templos budistas.
Este Gobi é um nada muito grande! Mas mais do que este nada grande, o que em nós se entranha é a experiência de partilhar a bondade incondicional (gosto de a pensar nestes termos) dos nómadas. Aproximamo-nos do ger, surgem à porta, deixam-nos entrar, levamos farinha, batata, cebola e couve, eles dão a carne. Fazemos massa e comemos todos. À despedida dizem estar contentes por termos aparecido para almoçar com eles.


reserva Natural Batkhaah Uul; Kharkhorin: antiga capital fundada por Gengis Khan; algures na Mongólia: Quico, ovelhas e nuvens


Moltzog Els em Bayanzag; Yolyn Am (boca do abutre); Baga Gazaryn Chuluu: Jota e rochas


viajar observando postais de Portugal; o horizonte com binóculos; foto feita a pedido

2 comentários:

Anónimo disse...

Estou completamente extasiado... De certeza que vocês estão mesmo bem, esta descrição da vossa tour é no mínimo surrealista. Realmente quando vos chamei burgueses pelo facto de comprarem uma tour organizada não podia imaginar que fosse assim tão sofisticada... Quanto às aventuras com os motoristas e os guias, não é nada que, à posteriori, não se considere totalemente expectável, mas percebo bem que com o vosso entusiasmo vos parecesse uma proposta de sonho. A descrição quanto às experiências alimentares é arrepiante, nem consigo imaginar as vossas caras de entusiasmo (e vocês até estão muito abertos a novas experiências deste género).
Agora não vale desanimar, vamos continuar com força porque ainda haverá muitas surpresas e aventuras pela frente.
Então e as fotos, não vimos nada....
Bjs e Abraços

Jota disse...

As fotos estao la agora. Cuidado que queimam, acabam de sair do forno! Beijinhos e abraco para ti e as tuas companhias!