17 novembro 2005

51. Balanço no Baloiçar do Avião

De regresso! Desta vez trata-se de um ANSIADO regresso: por terem sido seis as semanas que passaram desde que deixei a minha parte de Santarém e de Lisboa; por me ter sido delicado lidar com a arrogância pública dos Russos e pela dificuldade em lhes arrancar uma simpatia; e porque está agora cumprida a tarefa a que nos propusemos.

No banco atrás do meu, tagarela aguda uma Russa há mais de duas horas que, enquanto se tenta encaixar no seu espaço, dá coices nas costas da minha cadeira; o russo da nossa esquerda dorme há mais de duas horas – nem comeu; à direita, do outro lado da coxia, está um moderno casal duo-étnico (hispano-russo), e duo-etário (35-50). Apetece-me tanto parar de ouvir este russo dos niets, do kaniéstna, do celucháio vásse. Largar-me desta superioridade com que se nos dirigem, seja com as suas palavras a mostrarem que se estou na Rússia tenho de saber Russo, seja com os seus movimentos rudes e deseducados que ora me empurram ora me passam à frente seja em que fila for.

Chego ao fim desta viagem com umas quantas interrogações sobre aquela que era uma das minhas maiores certezas: VIAJAR, SEMPRE! E se for para um país onde nenhum turismo é bem-vindo? (onde não existem postos de turismo nem se vendem postais ilustrativos do país?); e se for para um país onde um estrangeiro não é especialmente bem tratado, onde aliás as pessoas não se tratam bem umas às outras? Afinal não são só as doenças, a miséria ou a guerra que justificam as escolhas para um país a não explorar.
Foi esta uma viagem difícil. Umas férias emocionalmente cansativas quer pelo confronto constante com culturas diferentes, quer pelas decisões que tivemos de tomar por vezes tão às cegas. Fisicamente também conhecemos novos limites: de frio, de higiene, de sonos trocados pelos oito fusos horários que atravessámos por terra. Mas entre as adversidades tantas novidades, tantas imagens quando fecho os olhos. Pego nas 3 Paragens que orientaram a nossa viagem:

Primeira Paragem, Lago Baikal. Conto sobre a solidão e o silêncio deste lago. Emocionei-me sem esperar e de forma descontrolada das duas vezes em que me cruzei com ele. É um ser vivo, um gigante que respira manso e que espera. A ilha de Olkhon deita-se ao lago de muitas formas e feitios: terra árida, escarpas rochosas, praia de areia, praia de seixos. A limpidez da água e as suas margens despidas de vegetação foram uma surpresa.

Segunda Paragem, Nómadas da Mongólia. Dormimos com nómadas, usufruímos da sua hospitalidade e retribuímos com a, tão por eles desejada, nossa presença. Ficámos na boca com o sabor azedo do leite das suas cabras e camelas, no corpo tivemos a experiência do gelo da noite e nos sacos de cama o cheiro à carne gorda do borrego. Mas a ideia de liberdade que associava ao nomadismo esclareceu-se: não há vida mais dependente das rotinas do que a vida dos nómadas. Todos os dias a mesma tarefa, todos os anos a mesma busca pela sobrevivência. Os ritos sociais são rígidos e desempenham a função de linguagem universal numa forma de vida aparentemente tão liberta de influências externas.

Terceira Paragem, Cidade Proibida. À cidade de Pequim tirámos-lhe as medidas, espreitámos-lhe os Hutongs, a Cidade Proibida, palácios, parques, comemos-lhe dumplings, entrámos em mercados frenéticos, subimos-lhe a parte da muralha e regozijámo-nos com os chineses em Pequim. É uma cidade grandiosa e grande como nenhuma outra. Onde ainda não é grande em breve o será. A febre dos Jogos Olímpicos contamina gentes e locais e os seus ímpares comportamentos sociais contaminaram-me a mim!

(adenda às paragens inicialmente estabelecidas)
Quarta Paragem, Sibéria em movimento. A reentrada na Rússia levou-nos ao encontro com mais rudez mas trouxe-nos finalmente alguma simpatia sincera. Ao percorrermos a Sibéria, ao longo de uma semana e à velocidade constante do comboio, ganhámos no corpo uma perspectiva da sua dimensão que não teríamos de qualquer outra forma (e que julgo nunca teremos em qualquer outro lugar do mundo). Afinal… quantos quilómetros vão de Vladivostok a Moscovo pelas linhas brancas da Sibéria?

Ai ai, o Transiberiano e o Baikal dos meus sonhos… Saciei esta vontade que por aqui andava há anos. Ainda bem que não deixei ficar este sonho mais tempo debaixo do meu travesseiro. Quero outro mas, atenção, agora quero um que seja menos cego! (bem, também já fiz os trinta!)


a última vista sobre o Baikal que começava a gelar; típicas montanhas da Mongólia; faltam dois anos mas já se vive o olimpico em Pequim; Sibéria só

1 comentário:

Anónimo disse...

Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo

A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram
Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece
O Tejo que reflecte o dia à solta
æ noite é prisioneiro dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem
E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes
Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a Única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras
E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura
Na Lisboa que amanhece