02 dezembro 2005

52. Falar Russo (e também Mongol e ainda Mandarim)

Era uma das minhas maiores expectativas: como é que afinal nos íamos conseguir desenvencilhar na comunicação com os russos? que utilidade iriam ter os meus dois anos de russo académico?
Depois de umas dificuldades iniciais, a operação da compra do primeiro bilhete de comboio veio confirmar, de uma vez por todas, que o assunto não ia ser nada fácil. Eu armada de um russo tosco nada podia fazer contra arrogância com que me respondiam e corrigiam as minhas frases.

(segue-se um parênteses técnico após o qual voltaremos à saga da viagem)
A dificuldade em montar uma frase em língua russa prende-se com o caso dos “casos”. Em português temos uma ordem obrigatória para arrumar as palavras dentro da frase. É esta ordem que nos permite apontar quem é o sujeito e qual é o complemento. Por exemplo: Jota vê Quico. Para nós aqui é claro quem é que vê quem, precisamente porque a regra obriga a que o sujeito apareça antes da acção que vai praticar, e o complemento directo depois da acção de que está a ser vítima.
Ora, os Russos não têm ordem obrigatória para a estrutura das suas frases mas claro que têm outra solução para saber afinal quem é que vê e quem é que está a ser visto. Aos olhos russos Jota vê Quico será uma frase que não faz sentido porque, para eles, esta frase tem dois sujeitos e não se entende quem faz nem que sofre a acção. É então que recorrem aos “casos” ou seja dão marteladas especiais às palavras que não desempenham a função de sujeito. Assim, o Quico como vítima da acção vai aparecer martelado e a frase fica qualquer coisa como: Jota vê Quicá; ou então, trocando a ordem que para os russos é irrelevante: Quicá vê Jota. E em ambas as frases quem vê é a Jota e que é visto é sempre o Quico.
Bem, a lógica é outra mas faz tanto sentido quanto a nossa. O que dói nas marteladas é que as há de todas as formas e feitios e que devem ser dadas nas alturas indicadas, ao género e número indicados. Por exemplo se fosse Quico vê Jota, a martelada que se dá na Jota seria outra porque a Jota é feminina. A frase ficaria Quico vê Jotú ou, claro seria possível, Jotú vê Quico. E se a acção não fosse ver mas sim, por exemplo, conversar com, as marteladas ainda teriam outras variantes.

(e de volta)
Acusei logo cedo a pressão de estar frente ao russo a pensar na martelada que ia ter de dar naquela frase, a descobrir de que tipo era a martelada que ele tinha acabado de dar e isto tudo sempre a ver se a minha martelada não saía ao lado e não me acertava em cheio nos dedos!
Senti por diversas vezes, entre as pessoas com que estabelecíamos comunicação para que nos fosse prestado um serviço, uma arrogância em resposta ao meu esforço em falar na língua deles. Caíram-me em cima olhares de censura felicitando-me pelo atrevimento em chegar ali e encetar conversa com aquele meu tosco russo (como se toda a gente aprendesse russo em qualquer país do mundo!). E eu a pensar que levar na manga mais do que as palavras básicas seria uma alegria para os russos e um trunfo de simpatia garantida!

Por outro lado, os relacionamentos privados foram bem mais facilitados a partir do momento em que ficava esclarecido que, apesar do meu ar, afinal eu não era Russa. Era uma sorte para nós eu conseguir entendê-los, mas também era uma sorte para eles porque para além da língua mãe poucos foram os apresentaram alternativas. Cheguei até a receber elogios ao meu “bom russo” mas confesso que não terão sido muito sinceros (pelo menos não o foi aquele que surgiu depois de duas frases banais de cumprimento).
Apesar do encontro inesperado com estas dificuldades foram determinantes os meus conhecimentos. Cumprimos todas as tarefas: comprámos todos os bilhetes, apanhámos todos os comboios; não comemos nada que não quiséssemos; não andámos perdidos sem o querer; lemos nomes de ruas, de paragens de metro, de estabelecimentos comerciais (o que aqui é muito relevante porque não há montras nem janelas abertas por onde se possa descobrir o aqui funciona lá dentro).

Se na Mongólia tivemos o privilégio (?!!) de andar de guia intérprete ao lado e conseguimos não nos desorientar (até porque o alfabeto usado na Mongólia é o Cirílico – o mesmo da Rússia), na China, em Harbin, foi ímpar a sensação que experimentámos ao procurar um hotel naquela cidade a meio da noite. Munidos de uma planta pouco rigorosa conseguimos chegar à rua que nos PARECEU ser a que nos interessava, mas no meio daquela tralha luminosa e pisca-pisca dos néonnéoneses publicitários não havia nenhum “H” nem nenhum letreiro que não estivesse em chinês. Alguém que passava, ao ver-nos sem olhos em bico e de olhar perdido, “empurrou-nos” (com alguma dificuldade) para a porta imediatamente atrás de nós enquanto sorrindo, e acenando, juntava as duas palmas da mão, as colocava sob a orelha e pendia a cabeça em jeito de “dormir”. Acabámos por entrar mas nem lá dentro acreditámos ser aquele o Hotel que procurávamos. À esquerda um mini cabeleireiro, ao fundo um balcão de 5 metros de comprido, ao nosso lado uma chinesa de quimono vermelho e pantufas peludas e, no átrio que antecedia o balcão, aquários com peixes do tamanho de peixes de mar! Obviamente a situação não melhorou quando, sem nos deixar chegar ao balcão, a menina do quimono e das pantufas, nos pediu que nos descalçássemos e nos fez chegar aos pés um par de chinelos de plástico! No final sempre se tratava de um hotel chinês onde apesar de tudo se alugam quartos. Apontando para os símbolos do guia de conversação, trabalhando a mímica e falando português, conseguimos perguntar o preço, pedir para ver o quarto antes de fechar negócio e, mais tarde, reclamar o facto de uma família de baratas partilhar o nosso quarto sem participar na despesa!

Saber ler e falar Russo foi imprescindível para “resolver assuntos” e conversar nos comboios sobre Portugal ou sobre a nossa vida (temática predilecta dos russos: se somos casados, se não temos filhos e porque é que não temos filhos, onde trabalhamos e quanto ganhamos). De Mongol aprendemos a cumprimentar, a agradecer e a desejar boa noite e, de resto, deixámo-nos levar por aquela guia tão peculiar que connosco comunicava menos do que os olhares dos nómadas. Na China vivemos um pouco protegidos no apartamento do Gustavo mas foi inevitável a agradável sensação de perdidos, ou melhor de “abreviados”, quando tocava a transmitir o que quer que fosse recorrendo a gestos básicos e universais!

No fundo, continuo a achar que o sucesso da comunicação depende da inteligência dos intervenientes que se reflecte na capacidade de usar o sentido de abstracção para que, por momentos, se libertem das regras do seu código habitual e fiquem aptos a captar novos sinais.



a importância de saber ler cirílico: onde estamos? na Praça Vermelha!; explicações de um Russo sobre "como viajar"; edifício e outdoor: modernidades em língua mongol; duas curiosidades Chinesas: uma menina a quem davam dinheiro (a sua história nunca deveremos vir a saber qual é); e na última imagem: consultando o nosso phrase book o chinês vai ficar a saber se viajamos ou não em lua de mel

1 comentário:

Unknown disse...

REalmente aprender russo é muito complicado...