Em Pequim, no Templo do Céu, quando chocámos com os jornalistas portugueses da Agência Lusa (ver post eles choram tão mal), um deles, ao saber que tínhamos vindo de comboio desde Moscovo perguntou-nos se o transiberiano ainda é o que pensamos. Respondi-lhe, em jeito de negação, que era o transporte popular russo.
O apelo à memória colectiva contido na expressão "o que pensamos" intrigou-me. Se "o que pensamos" é num expresso do Oriente carregado do requinte e glamour do princípio do séc.XX onde o bojudo Poirot se balança entre as luxuosas cabines e a carruagem restaurante, então, a minha entoação negativa foi acertada.
Os inúmeros comboios que atravessam hoje a Sibéria carregam com os russos que não tem possibilidades económicas para se movimentarem de avião (a maioria).
A rede nacional ferroviária é autenticamente a espinha dorsal no território do maior pais, em área, do mundo. Carga e passageiros a linfa. O seu domínio sobre o sistema rodoviário é facilmente estendível. As longas distâncias, a neve, e as baixas temperaturas (até aos -60 graus Celsius) do Inverno siberiano são, tanto para condutores como para veículos, terríveis óbices ao seu óptimo funcionamento. Os comboios estão aquecidos, o tempo passa-se a dormir (todos os lugares são convertíveis em cama), e a sua mecânica (carris, locomotivas eléctricas, caldeiras a carvão) está melhor adaptada ao rigor invernio do que, por exemplo, os motores de arranque ou os travões hidráulicos dos automóveis.


Um pouco de história…
A decisão de avançar com a construção de uma ferrovia que unificasse Este-Leste a Rússia foi tomada em 1886 pelo Czar Alexandre III, 50 anos após a inauguração do troço Moscovo-São Petersburgo (a primeira linha ferroviária de usufruto privado do Czar Nicolau I). A construção, em diversos sub lances, começou em 1881 e ficou concluída 10 anos mais tarde. Nesta primeira fase a ligação efectuava-se pela Manchúria (território Chinês) devido às dificuldades levantadas pelo terreno acidentado da região a Oeste do Lago Baikal (só em 1916 é que ficou completa a linha em território Russo).
Talvez a já referida memória colectiva ocidental tenha tido origem na divulgação que a Rússia imperial fez da sua obra na exposição universal de Paris em 1900. A alternativa ferroviária ao canal do Suez para chegar ao Oriente foi apregoada carregada de luxos. As carruagens da companhia Belga "Wagon-Lits" ofereciam casas de banho em mármore, restaurante com aquários cheios de peixes vivos, pianos-bar, ginásio, cabeleireiro, estúdio de fotografia e uma carruagem igreja. Um contraste "interessante" com as condições dadas aos construtores da linha (a maioria exilados em trabalho forçado muitas vezes pago com a morte).
Durante a guerra civil de 18-21, a resistência dos Russos Brancos à revolução Bolchevique foi recuando de Este para Oeste seguindo a linha do comboio, o que obrigou, à posteriori, a grossos esforços de reconstrução por parte dos Soviéticos.
No período da Segunda Guerra Mundial, a ferrovia foi igualmente importante. O êxodo de Russos Europeus para a Sibéria efectuou-se ao longo das cidades e aldeias servidas pelo comboio, e este foi essencial no transporte de equipamento militar às tropas russas.



o transiberiano em Krasnoyarsk; o transmongoliano em Ulaan Baatar; a linha BAM em Tynda
No presente…
Actualmente, o transporte público mais importante da Rússia organiza-se por números crescentes mas decrescendo em importância e consequentemente em qualidade. Passo a explicar: Os comboios nº1 e 2 (Rossia) asseguram a ligação principal mais directa Moscovo-Vladivostok e vice-versa. Dai para cima é sempre a piorar. A partir do número 900 e tal os comboios são correios ou de carga (na ligação que fizemos entre Komsomolsk e Tynda o número do comboio era o 963!).
O transiberiano hoje é uma linha totalmente electrificada, ao contrário da linha BAM e do transmongoliano, que ainda funcionam com locomotivas a Diesel.
As carruagens são, na sua maioria, construídas na ex-RDA nos anos 70/80. São extremamente sólidas, de boa construção, e apesar do uso intensivo continuam em boas condições de utilização.
Existem três classes de conforto. SPALNY VAGON (primeira classe) - compartimento de duas camas; KUPE (segunda classe) - compartimento de 4 camas; e PLATSKARTNY (terceira classe) - carruagens abertas, com corredor excêntrico deixando, entre divisórias, quatro camas transversais de um lado e duas longitudinais do outro. Ou seja, num espaço equivalente, a primeira classe aloja duas pessoas, a segunda quatro e a terceira seis (densidade que obviamente se reflecte no uso da casa de banho).
Todas as carruagens tem em cada extremidade uma básica instalação sanitária (sanita e lavatório) e dois compartimentos onde se pode fumar (as zonas de entrada -não aquecidas). Se num dos extremos se localiza o caixote do lixo comum, no outro encontra-se o insubstituível samovar (caldeira com água a 98 graus essencial para a alimentação) e as cabines das duas providnitsas (personagens habitualmente femininas que representam a lei, a ordem e a limpeza nas carruagens).
O emprego de providnitsa é, digamos, oscilante. Oscila entre a dignidade de uma aperaltada farda que, em sentido, controla no cais a entrada dos passageiros nas carruagens; e o serviçal avental que, debruçado, varre, aspira e esfrega toda a espécie de imundices do chão e das sanitas deste seu reino.
A única carruagem excepção às já descritas é o Vagon-Restaurant. Metade cozinha, metade mesas de 4 assentos, serve as refeições diurnas tradicionais. Está invariavelmente vazia, já que o grosso dos clientes viaja de comboio para poupar dinheiro e não para o esbanjar em restaurações dispendiosas (considerando as alternativas, que são: trazer a própria comida ou abastecerem-se nas inúmeras vendedoras de cais, aquando das paragens nas estações).
Posto isto, refira-se que os bilhetes Platskartny são os primeiros a esgotar, que quem compre Kupe pensando que irá ter a sorte de viajar sozinho no compartimento está bem enganado, e que da primeira classe não teço comentários por falta de experiência própria.



segunda Classe: Kupe



terceira Classe: Platskartny



actividades no cais: providnitsas, babuschkas e abastecimento de carvão
Aos nossos olhos…
Aos nossos olhos viajar de comboio, por regra, é bom. Aprecia-se a paisagem numa cadência interessante, tem-se uma certa liberdade de movimentos corporais, e não se desafia a gravidade. Viajar cinco dias em Classe Platskarny no nº 75 Tynda-Moscovo é... positivo.
Na bilheteira hesitámos entre a segunda e a terceira classe: - vamos em kupe e arriscamos a privacidade de um compartimento partilhado (sabe-se lá o que nos calha em sorte) ou pagamos menos de metade e viajamos à russa pura e dura? PLATSKARTNY, PAJALSTA! Só estavam disponíveis duas camas superiores, o que é uma desvantagem, já que ficámos sem acesso directo à mesa e, nesta classe, o espaço disponível em altura nas camas superiores não permite sequer estar sentado, só mesmo deitado, o que durante cinco dias é, convenha-se, desagradável!
Numa expectativa um tanto receosa entrámos no comboio já apinhado de gente e, surpreendentemente, cheio de chineses e suas bagagens chinesas. Nos nossos lugares uma Babuschka (avozinha) acomodava-se ainda com auxílio de duas filhas. Trataram de nos perguntar se íamos para longe e, satisfeitas com o nosso destino informaram-nos que a Babuschka também ia para Moscovo. Pensaram talvez que assim a sua mãe tinha alguém que olhasse por ela...mal sabiam que seríamos nós a ganhar uma enternecedora Babuschka. Nádia de seu nome adoptou-nos como seus netos durante cinco dias. Olhou sempre pelos nossos direitos na questão do uso das mesas às refeições e dos lugares sentados durante o dia (isto porque há russos que dormem a viagem toda). Apaparicou-nos com "coisinhas" tiradas do seu cesto de comida, deu-nos sábios conselhos, mimou-nos. Quase nos fez lamentar que a viagem chegasse ao fim…
Ao longo do trajecto passaram pela nossa carruagem dezenas de passageiros. A maioria pernoitava uma ou duas noites. Os costumes do passageiro-modelo russo são engraçados. Entram todos aperaltados (a vestimenta, quer feminina quer masculina, é cuidada, embora a moda sofra de uma decalage de 20 anos). A tarefa primeira, depois de assumir os lugares marcados e de arrumar a bagagem, é trocar de roupa. O “aperaltamento” vai para o cabide ou para a mala (dependendo da classe) e é substituído pelas inevitáveis calças de fato de treino e chinelos – comportamento transversal a todas as classes (de bilhetes e sociais). Aquando das paragens, é vê-los sair para o cais nevado em chinelos e t-shirt de alças, a comprar sementes de girassol às Babuschkas. Meia hora antes das suas estações de destino, invertem o processo, e lá saem os russos das carruagem de novo aperaltadíssimos, no vestir e no cuidado facial (barbeados os homens e maquilhadas as mulheres).
Este vai e vem de Russos, acompanhado das horas de refeição e das ansiadas paragens, foram a rotina do nosso dia-a-dia. Talvez a uma média de duas em duas horas, o comboio chegava a uma estação. Em algumas parava apenas dois minutos, sem que fosse permitida a saída; noutras, o tempo de paragem variava entre 20 e 60 minutos, e aí sim, sentíamo-nos como cães de apartamento na hora do "vamos à rua?!"! Em Sevierobaikalsk (cidade na margem norte do Lago Baikal) pudemos mesmo sair da estação e, em passo de corrida, passar 15 minutos numa idílica praia banhada de sol e gelo!
A alimentação no comboio baseia-se nos 98º da água do samovar. A rodos, chá e café (instantâneo 3 em 1 - café, açúcar e leite em pó). Ainda mais a rodos, noodles (massas) e puré (instantâneos e guarnecidos com vegetais ou carne).
Para acompanhar, pão de forma russo (bem bom), fruta (bananas, laranjas e maçãs), uma ocasional salada (couve, cenoura, beterraba e maionese), e um chocolatinho para terminar. Para variar iogurtes, kefir, queijo russo (tipo flamengo), flocos de aveia, pasteis fritos (de couve ou puré de batata) e uns óptimos crepes de requeijão doce (blini com tvarok). Alguns russos mais portentosos, a este regime adicionam chouriças, pernas de frango, peixe fumado, batata cozida, gelados, cerveja e claro… vodka! A vertente masculina agrupa-se, e emborca vodka pela noite dentro até, como vimos, ao limite físico!
Aos nossos olhos, viajar no transiberiano marcou. Marcou pela experiência de reduzir significativamente a esfera pessoal sentindo-nos confortáveis. A máxima de que a tudo nos habituamos confirma-se em absoluto.



samovar e hora da refeição



colegas de viagem e a querida babuschka Nádia
Estatísticas…
Eis um quadro resumo dos nossos percursos:
Comboio, ORIGEM-DESTINO, Classe, horas de viagem, km percorridos
-nº10, MOSCOVO-IRKUTSK, Kupe, 76h, 5185 km
-nº340, IRKUTSK-ULAN-UDE, Platskartny, 8h, 457km
-nº364, ULAN-UDE-ULAAN-BAATAR, Kupe, 25h, 662km
-nº4, ULAN-BAATAR-PEQUIM, Kupe, 32h, 1559km
-nºT71, PEQUIM-HARBIN, assento duro, 13h, 1378km
-nºN23, HARBIM-SUIFENHE, Kupe, 10h, 510km
-nº402, SUIFENHE-GRADEKOVO, assento duro, 2h, 20km
-autobus, GRADEKOVO-VLADIVOSTOK, assento, 4h, 225km
-nº351, VLADIVOSTOK-KOMSOMOLSK, Platskartny, 28h, 1128km
-nº963, KOMSOMOLSK-TYNDA, Kupe, 37h, 1289km
-nº75, TYNDA-MOSCOVO, Platskartny, 119h, 7273km
Não contando com o Extra Tour Mongolia, percorremos 19686km em 354h - uma média de 55km por hora. Com isto concluímos que duas das seis semanas da viagem foram passadas dentro de um comboio e que os 20 mil km andados equivalem, em linha recta, a uma volta ao mundo no paralelo 60 (São Petersburgo) e a meia volta ao mundo no paralelo 40 (de Lisboa).



o transmongoliano no Gobi: na fronteira entre a Mongólia e a China, mudança de bitola dos carris



o transmongoliano na China (o único comboio onde as janelas se podiam abrir)



15 comentários:
Esta descrição está fantástica. Claramente está aqui o guião para o próximo episódio da serie "viajante aventureiro".
Anteontem de manhã, regozijei a ouvir a rubrica de crónicas diária ‘Sinais’ do Fernando Alves na TSF. Está, como de costume, muito bem escrita na distinta cadência narrativa do jornalista! É um suspense galopante com um clímax que me atirou ao chão!
Aconselho vivamente a escuta nos registos do site da TSF:
http://tsf.sapo.pt/online/radio/index.asp?pagina=Arquivo
Aqui vai um cheirinho:
“Sinais - 29 Maio
O Trans-Siberiano
O homem que anunciou ir «em peregrinação», leio entretanto, é acompanhado de um séquito impressionaste, que inclui dois chefes de cozinha. Viaja no Trans-Siberiano, em dois vagões particulares, como um monarca do século XIX. Deus me perdoe a fúria bolchevique que se me instala no coração, olhando a pose insuportável do viajante que parece um Romanov, rodeado de champanhe e caviar.
Fernando Alves”
Lamento profundamente a minha situação económica actual, que não me permite fazer a viagem dos meus sonhos de menino. Apesar disso, e agora que sou homem adulto, regozijo-me da lucidez que o tempo e as provações me trouxeram e,num tributo à minha lucidez, não posso deixar de expressar o que me vai na alma ao ver o vosso pretensioso blog:
O dinheiro chega mais longe que os sonhos.
Infelizmente no vosso blog nada referem sobre o dinheiro que gastaram, a organizaçao da viagem, se foram por conta propria, etc...estas seriam informações uteis para quem planeia fazer esta viagem.
Obrigado
Catarina
Olá Catarina,
sim, fizémos a viagem por nossa conta e risco. Fomos nós que organizámos e tratámos de tudo antes e durante a viagem. Os primeiros posts deste http://foradomapa.blogspot.com/ relatam peripécias que começaram ainda em Portugal e alguns dos seguintes posts falam sobre a aventura que foi comprar os bilhetes de comboio.
Se quiseres mais informações teremos gosto em responder. Podes mandar um mail para o contacto que está no "Profile" da Jota, no canto superior direito desta página.
Obrigada pela tua visita!
Adorei a narrativa da vossa viagem numa interpretação brilhante do nosso idioma. Muitíssimo obrigado!
Parabéns pela aventura que se lê fantástica e cheia de misticidade. Obrigado pela vossa partilha..
Um abraço viajante..
João
Olá! Adorei a reportagem mas gostaria de saber mais detalhes como por exemplo onde se pode consultar mais informaçoes sobre os comboios, custos, etc...não tenho o outlook activo, logo não vos consigo escrever para o mail. Haverá outra maneira de vos contactar??
Obrigada!
Olá Ana,
Através do link principal deste blog:
Fora do Mapa
podes ter acesso a mais informação e, na coluna da direita, a uma série de links que nos foram úteis durante o planeamento da nossa viagem.
É preciso explorar.
Quanto aos nossos mailes, podes saber quais são se clicares sobre os nosses nomes nos perfis (fotos também na coluna da direita, em cima). Não é preciso o outlook. Espero que funcione.
Olá! passei por acaso pelo vosso blog e adorei a descriçao da vossa viagem! continuem a escrever q estou curiosa para saber o resto da viagem! lol :P
bjs
Bem só agora é k reparei na data...lol pequeno lapso! tenho q ir ver os vossos post anteriores...upsss :(
Muito legal esta viagem!
Vai ser a viagem da minha vida.
Gostei bastante de ler a vossa descricao sobre o transiberiano e estou a pensar fazer de moscovo a pequim.
Estive pelas Indias nos ultimos tres meses em trabalho e viagem e revejo-me em muitas situacoes aqui relatadas e na evolucao no que toca ao "nosso espaco" e 'a esfera privada que se muda com o habito.
Muito obrigado pela partilha!
nuno sousa
Muito bom.
Eu e uns amigos estamos a pensar em fazer o trans-siberiano até Pequim e depois até Lhasa e este Blog foi uma boa ajuda. Mais alguma dicaS?
Pedro Tavares
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