17 novembro 2005

51. Balanço no Baloiçar do Avião

De regresso! Desta vez trata-se de um ANSIADO regresso: por terem sido seis as semanas que passaram desde que deixei a minha parte de Santarém e de Lisboa; por me ter sido delicado lidar com a arrogância pública dos Russos e pela dificuldade em lhes arrancar uma simpatia; e porque está agora cumprida a tarefa a que nos propusemos.

No banco atrás do meu, tagarela aguda uma Russa há mais de duas horas que, enquanto se tenta encaixar no seu espaço, dá coices nas costas da minha cadeira; o russo da nossa esquerda dorme há mais de duas horas – nem comeu; à direita, do outro lado da coxia, está um moderno casal duo-étnico (hispano-russo), e duo-etário (35-50). Apetece-me tanto parar de ouvir este russo dos niets, do kaniéstna, do celucháio vásse. Largar-me desta superioridade com que se nos dirigem, seja com as suas palavras a mostrarem que se estou na Rússia tenho de saber Russo, seja com os seus movimentos rudes e deseducados que ora me empurram ora me passam à frente seja em que fila for.

Chego ao fim desta viagem com umas quantas interrogações sobre aquela que era uma das minhas maiores certezas: VIAJAR, SEMPRE! E se for para um país onde nenhum turismo é bem-vindo? (onde não existem postos de turismo nem se vendem postais ilustrativos do país?); e se for para um país onde um estrangeiro não é especialmente bem tratado, onde aliás as pessoas não se tratam bem umas às outras? Afinal não são só as doenças, a miséria ou a guerra que justificam as escolhas para um país a não explorar.
Foi esta uma viagem difícil. Umas férias emocionalmente cansativas quer pelo confronto constante com culturas diferentes, quer pelas decisões que tivemos de tomar por vezes tão às cegas. Fisicamente também conhecemos novos limites: de frio, de higiene, de sonos trocados pelos oito fusos horários que atravessámos por terra. Mas entre as adversidades tantas novidades, tantas imagens quando fecho os olhos. Pego nas 3 Paragens que orientaram a nossa viagem:

Primeira Paragem, Lago Baikal. Conto sobre a solidão e o silêncio deste lago. Emocionei-me sem esperar e de forma descontrolada das duas vezes em que me cruzei com ele. É um ser vivo, um gigante que respira manso e que espera. A ilha de Olkhon deita-se ao lago de muitas formas e feitios: terra árida, escarpas rochosas, praia de areia, praia de seixos. A limpidez da água e as suas margens despidas de vegetação foram uma surpresa.

Segunda Paragem, Nómadas da Mongólia. Dormimos com nómadas, usufruímos da sua hospitalidade e retribuímos com a, tão por eles desejada, nossa presença. Ficámos na boca com o sabor azedo do leite das suas cabras e camelas, no corpo tivemos a experiência do gelo da noite e nos sacos de cama o cheiro à carne gorda do borrego. Mas a ideia de liberdade que associava ao nomadismo esclareceu-se: não há vida mais dependente das rotinas do que a vida dos nómadas. Todos os dias a mesma tarefa, todos os anos a mesma busca pela sobrevivência. Os ritos sociais são rígidos e desempenham a função de linguagem universal numa forma de vida aparentemente tão liberta de influências externas.

Terceira Paragem, Cidade Proibida. À cidade de Pequim tirámos-lhe as medidas, espreitámos-lhe os Hutongs, a Cidade Proibida, palácios, parques, comemos-lhe dumplings, entrámos em mercados frenéticos, subimos-lhe a parte da muralha e regozijámo-nos com os chineses em Pequim. É uma cidade grandiosa e grande como nenhuma outra. Onde ainda não é grande em breve o será. A febre dos Jogos Olímpicos contamina gentes e locais e os seus ímpares comportamentos sociais contaminaram-me a mim!

(adenda às paragens inicialmente estabelecidas)
Quarta Paragem, Sibéria em movimento. A reentrada na Rússia levou-nos ao encontro com mais rudez mas trouxe-nos finalmente alguma simpatia sincera. Ao percorrermos a Sibéria, ao longo de uma semana e à velocidade constante do comboio, ganhámos no corpo uma perspectiva da sua dimensão que não teríamos de qualquer outra forma (e que julgo nunca teremos em qualquer outro lugar do mundo). Afinal… quantos quilómetros vão de Vladivostok a Moscovo pelas linhas brancas da Sibéria?

Ai ai, o Transiberiano e o Baikal dos meus sonhos… Saciei esta vontade que por aqui andava há anos. Ainda bem que não deixei ficar este sonho mais tempo debaixo do meu travesseiro. Quero outro mas, atenção, agora quero um que seja menos cego! (bem, também já fiz os trinta!)


a última vista sobre o Baikal que começava a gelar; típicas montanhas da Mongólia; faltam dois anos mas já se vive o olimpico em Pequim; Sibéria só

11 novembro 2005

47. Transiberiano

A interpelação jornalística…
Em Pequim, no Templo do Céu, quando chocámos com os jornalistas portugueses da Agência Lusa (ver post eles choram tão mal), um deles, ao saber que tínhamos vindo de comboio desde Moscovo perguntou-nos se o transiberiano ainda é o que pensamos. Respondi-lhe, em jeito de negação, que era o transporte popular russo.
O apelo à memória colectiva contido na expressão "o que pensamos" intrigou-me. Se "o que pensamos" é num expresso do Oriente carregado do requinte e glamour do princípio do séc.XX onde o bojudo Poirot se balança entre as luxuosas cabines e a carruagem restaurante, então, a minha entoação negativa foi acertada.
Os inúmeros comboios que atravessam hoje a Sibéria carregam com os russos que não tem possibilidades económicas para se movimentarem de avião (a maioria).
A rede nacional ferroviária é autenticamente a espinha dorsal no território do maior pais, em área, do mundo. Carga e passageiros a linfa. O seu domínio sobre o sistema rodoviário é facilmente estendível. As longas distâncias, a neve, e as baixas temperaturas (até aos -60 graus Celsius) do Inverno siberiano são, tanto para condutores como para veículos, terríveis óbices ao seu óptimo funcionamento. Os comboios estão aquecidos, o tempo passa-se a dormir (todos os lugares são convertíveis em cama), e a sua mecânica (carris, locomotivas eléctricas, caldeiras a carvão) está melhor adaptada ao rigor invernio do que, por exemplo, os motores de arranque ou os travões hidráulicos dos automóveis.



Um pouco de história…
A decisão de avançar com a construção de uma ferrovia que unificasse Este-Leste a Rússia foi tomada em 1886 pelo Czar Alexandre III, 50 anos após a inauguração do troço Moscovo-São Petersburgo (a primeira linha ferroviária de usufruto privado do Czar Nicolau I). A construção, em diversos sub lances, começou em 1881 e ficou concluída 10 anos mais tarde. Nesta primeira fase a ligação efectuava-se pela Manchúria (território Chinês) devido às dificuldades levantadas pelo terreno acidentado da região a Oeste do Lago Baikal (só em 1916 é que ficou completa a linha em território Russo).
Talvez a já referida memória colectiva ocidental tenha tido origem na divulgação que a Rússia imperial fez da sua obra na exposição universal de Paris em 1900. A alternativa ferroviária ao canal do Suez para chegar ao Oriente foi apregoada carregada de luxos. As carruagens da companhia Belga "Wagon-Lits" ofereciam casas de banho em mármore, restaurante com aquários cheios de peixes vivos, pianos-bar, ginásio, cabeleireiro, estúdio de fotografia e uma carruagem igreja. Um contraste "interessante" com as condições dadas aos construtores da linha (a maioria exilados em trabalho forçado muitas vezes pago com a morte).
Durante a guerra civil de 18-21, a resistência dos Russos Brancos à revolução Bolchevique foi recuando de Este para Oeste seguindo a linha do comboio, o que obrigou, à posteriori, a grossos esforços de reconstrução por parte dos Soviéticos.
No período da Segunda Guerra Mundial, a ferrovia foi igualmente importante. O êxodo de Russos Europeus para a Sibéria efectuou-se ao longo das cidades e aldeias servidas pelo comboio, e este foi essencial no transporte de equipamento militar às tropas russas.


o transiberiano em Krasnoyarsk; o transmongoliano em Ulaan Baatar; a linha BAM em Tynda

No presente…
Actualmente, o transporte público mais importante da Rússia organiza-se por números crescentes mas decrescendo em importância e consequentemente em qualidade. Passo a explicar: Os comboios nº1 e 2 (Rossia) asseguram a ligação principal mais directa Moscovo-Vladivostok e vice-versa. Dai para cima é sempre a piorar. A partir do número 900 e tal os comboios são correios ou de carga (na ligação que fizemos entre Komsomolsk e Tynda o número do comboio era o 963!).
O transiberiano hoje é uma linha totalmente electrificada, ao contrário da linha BAM e do transmongoliano, que ainda funcionam com locomotivas a Diesel.
As carruagens são, na sua maioria, construídas na ex-RDA nos anos 70/80. São extremamente sólidas, de boa construção, e apesar do uso intensivo continuam em boas condições de utilização.
Existem três classes de conforto. SPALNY VAGON (primeira classe) - compartimento de duas camas; KUPE (segunda classe) - compartimento de 4 camas; e PLATSKARTNY (terceira classe) - carruagens abertas, com corredor excêntrico deixando, entre divisórias, quatro camas transversais de um lado e duas longitudinais do outro. Ou seja, num espaço equivalente, a primeira classe aloja duas pessoas, a segunda quatro e a terceira seis (densidade que obviamente se reflecte no uso da casa de banho).
Todas as carruagens tem em cada extremidade uma básica instalação sanitária (sanita e lavatório) e dois compartimentos onde se pode fumar (as zonas de entrada -não aquecidas). Se num dos extremos se localiza o caixote do lixo comum, no outro encontra-se o insubstituível samovar (caldeira com água a 98 graus essencial para a alimentação) e as cabines das duas providnitsas (personagens habitualmente femininas que representam a lei, a ordem e a limpeza nas carruagens).
O emprego de providnitsa é, digamos, oscilante. Oscila entre a dignidade de uma aperaltada farda que, em sentido, controla no cais a entrada dos passageiros nas carruagens; e o serviçal avental que, debruçado, varre, aspira e esfrega toda a espécie de imundices do chão e das sanitas deste seu reino.
A única carruagem excepção às já descritas é o Vagon-Restaurant. Metade cozinha, metade mesas de 4 assentos, serve as refeições diurnas tradicionais. Está invariavelmente vazia, já que o grosso dos clientes viaja de comboio para poupar dinheiro e não para o esbanjar em restaurações dispendiosas (considerando as alternativas, que são: trazer a própria comida ou abastecerem-se nas inúmeras vendedoras de cais, aquando das paragens nas estações).
Posto isto, refira-se que os bilhetes Platskartny são os primeiros a esgotar, que quem compre Kupe pensando que irá ter a sorte de viajar sozinho no compartimento está bem enganado, e que da primeira classe não teço comentários por falta de experiência própria.


segunda Classe: Kupe


terceira Classe: Platskartny


actividades no cais: providnitsas, babuschkas e abastecimento de carvão

Aos nossos olhos…
Aos nossos olhos viajar de comboio, por regra, é bom. Aprecia-se a paisagem numa cadência interessante, tem-se uma certa liberdade de movimentos corporais, e não se desafia a gravidade. Viajar cinco dias em Classe Platskarny no nº 75 Tynda-Moscovo é... positivo.
Na bilheteira hesitámos entre a segunda e a terceira classe: - vamos em kupe e arriscamos a privacidade de um compartimento partilhado (sabe-se lá o que nos calha em sorte) ou pagamos menos de metade e viajamos à russa pura e dura? PLATSKARTNY, PAJALSTA! Só estavam disponíveis duas camas superiores, o que é uma desvantagem, já que ficámos sem acesso directo à mesa e, nesta classe, o espaço disponível em altura nas camas superiores não permite sequer estar sentado, só mesmo deitado, o que durante cinco dias é, convenha-se, desagradável!
Numa expectativa um tanto receosa entrámos no comboio já apinhado de gente e, surpreendentemente, cheio de chineses e suas bagagens chinesas. Nos nossos lugares uma Babuschka (avozinha) acomodava-se ainda com auxílio de duas filhas. Trataram de nos perguntar se íamos para longe e, satisfeitas com o nosso destino informaram-nos que a Babuschka também ia para Moscovo. Pensaram talvez que assim a sua mãe tinha alguém que olhasse por ela...mal sabiam que seríamos nós a ganhar uma enternecedora Babuschka. Nádia de seu nome adoptou-nos como seus netos durante cinco dias. Olhou sempre pelos nossos direitos na questão do uso das mesas às refeições e dos lugares sentados durante o dia (isto porque há russos que dormem a viagem toda). Apaparicou-nos com "coisinhas" tiradas do seu cesto de comida, deu-nos sábios conselhos, mimou-nos. Quase nos fez lamentar que a viagem chegasse ao fim…
Ao longo do trajecto passaram pela nossa carruagem dezenas de passageiros. A maioria pernoitava uma ou duas noites. Os costumes do passageiro-modelo russo são engraçados. Entram todos aperaltados (a vestimenta, quer feminina quer masculina, é cuidada, embora a moda sofra de uma decalage de 20 anos). A tarefa primeira, depois de assumir os lugares marcados e de arrumar a bagagem, é trocar de roupa. O “aperaltamento” vai para o cabide ou para a mala (dependendo da classe) e é substituído pelas inevitáveis calças de fato de treino e chinelos – comportamento transversal a todas as classes (de bilhetes e sociais). Aquando das paragens, é vê-los sair para o cais nevado em chinelos e t-shirt de alças, a comprar sementes de girassol às Babuschkas. Meia hora antes das suas estações de destino, invertem o processo, e lá saem os russos das carruagem de novo aperaltadíssimos, no vestir e no cuidado facial (barbeados os homens e maquilhadas as mulheres).
Este vai e vem de Russos, acompanhado das horas de refeição e das ansiadas paragens, foram a rotina do nosso dia-a-dia. Talvez a uma média de duas em duas horas, o comboio chegava a uma estação. Em algumas parava apenas dois minutos, sem que fosse permitida a saída; noutras, o tempo de paragem variava entre 20 e 60 minutos, e aí sim, sentíamo-nos como cães de apartamento na hora do "vamos à rua?!"! Em Sevierobaikalsk (cidade na margem norte do Lago Baikal) pudemos mesmo sair da estação e, em passo de corrida, passar 15 minutos numa idílica praia banhada de sol e gelo!
A alimentação no comboio baseia-se nos 98º da água do samovar. A rodos, chá e café (instantâneo 3 em 1 - café, açúcar e leite em pó). Ainda mais a rodos, noodles (massas) e puré (instantâneos e guarnecidos com vegetais ou carne).
Para acompanhar, pão de forma russo (bem bom), fruta (bananas, laranjas e maçãs), uma ocasional salada (couve, cenoura, beterraba e maionese), e um chocolatinho para terminar. Para variar iogurtes, kefir, queijo russo (tipo flamengo), flocos de aveia, pasteis fritos (de couve ou puré de batata) e uns óptimos crepes de requeijão doce (blini com tvarok). Alguns russos mais portentosos, a este regime adicionam chouriças, pernas de frango, peixe fumado, batata cozida, gelados, cerveja e claro… vodka! A vertente masculina agrupa-se, e emborca vodka pela noite dentro até, como vimos, ao limite físico!
Aos nossos olhos, viajar no transiberiano marcou. Marcou pela experiência de reduzir significativamente a esfera pessoal sentindo-nos confortáveis. A máxima de que a tudo nos habituamos confirma-se em absoluto.


samovar e hora da refeição


colegas de viagem e a querida babuschka Nádia

Estatísticas…
Eis um quadro resumo dos nossos percursos:

Comboio, ORIGEM-DESTINO, Classe, horas de viagem, km percorridos
-nº10, MOSCOVO-IRKUTSK, Kupe, 76h, 5185 km
-nº340, IRKUTSK-ULAN-UDE, Platskartny, 8h, 457km
-nº364, ULAN-UDE-ULAAN-BAATAR, Kupe, 25h, 662km
-nº4, ULAN-BAATAR-PEQUIM, Kupe, 32h, 1559km
-nºT71, PEQUIM-HARBIN, assento duro, 13h, 1378km
-nºN23, HARBIM-SUIFENHE, Kupe, 10h, 510km
-nº402, SUIFENHE-GRADEKOVO, assento duro, 2h, 20km
-autobus, GRADEKOVO-VLADIVOSTOK, assento, 4h, 225km
-nº351, VLADIVOSTOK-KOMSOMOLSK, Platskartny, 28h, 1128km
-nº963, KOMSOMOLSK-TYNDA, Kupe, 37h, 1289km
-nº75, TYNDA-MOSCOVO, Platskartny, 119h, 7273km

Não contando com o Extra Tour Mongolia, percorremos 19686km em 354h - uma média de 55km por hora. Com isto concluímos que duas das seis semanas da viagem foram passadas dentro de um comboio e que os 20 mil km andados equivalem, em linha recta, a uma volta ao mundo no paralelo 60 (São Petersburgo) e a meia volta ao mundo no paralelo 40 (de Lisboa).


o transmongoliano no Gobi: na fronteira entre a Mongólia e a China, mudança de bitola dos carris


o transmongoliano na China (o único comboio onde as janelas se podiam abrir)

04 novembro 2005

45. O Fim da Linha

A cidade portuária de Vladivostok, fundada por marinheiros Russos em 1860, é hoje uma robusta urbe de 600 mil habitantes. É a estação terminal do transiberiano e, desde 1822, o porto de abrigo da frota militar russa do Pacífico.
Nesta data, a marinha relocalizou os seus navios desde Nikolaevska-na-Amur, 1000 km mais a norte, não só pela posição geo-estratégica de Vladivostok, mas sobretudo por estar gelada, e portanto inacessível, uma media de 70 dias por ano, em vez dos 190 de Nikolaevska-na-Amur.
Quase destruída pela guerra Russo-Japonesa em 1904, Vladivostok manteve-se fiel ao império até ser "libertada" pela revolução bolchevique em Outubro de 1922.
Durante a guerra-fria, e para protecção dos segredos da crescente armada russa, a cidade foi completamente selada a estrangeiros. Mesmo para um russo eram necessárias autorizações especiais para entrar na cidade.
Hoje, apesar de com facilidade se esbarrar contra zonas off-limits, é uma cidade aberta. Tão aberta que se diz ser um center point da actuação das famigeradas máfias russas.
Pela nossa parte, interessou-nos sobremaneira a sua topografia exaltante de colinas em torno da baia (porto natural). A São Francisco do Pacifico Oeste, assim chamada pela semelhança dos eléctricos que sobem e descem as colinas em linha recta, é a cidade mais bonita que visitámos na Rússia.


Vladivostok visto do topo de uma colina; praça soviética; estação de comboios

03 novembro 2005

44. Improbabilidades em Vladivostok

No prefácio do Guia Lonely Planet com que nos temos orientado aqui pela Rússia, descobrimos um aviso interessante. Advertem para o facto da inclusão de um dado Lugar nas páginas do Guia implicar, regra geral, a sua recomendação. Por sua vez, a exclusão de um outro Lugar não implica uma crítica. Afirmam que existem numerosas razões para a exclusão de um Lugar mas nomeiam só uma: "por vezes é apenas inapropriado encorajar o afluxo de viajantes".
Muitos dos melhores momentos das nossas viagens têm sido precisamente quando somos nós a tropeçar num local, a conquistar um segredo que não vem nos guias.
Em Vladivostok o nosso primeiro instinto foi passear pelas suas varias marginais banhadas pelo mar do Japão (ali tão perto ó Xico!). Na verdade este foi o primeiro instinto depois do instinto número Zero, de cariz pratico, que nos levou a travar uma dura e infrutífera batalha em meia dúzia de casas de câmbio para nos vermos livres de seis contos em nota Mongol... que raiva termos ficado com este dinheiro que nem lá na Mongólia lhe dão valor.
Adiante! Para um passeio pelas marginais de Vladivostok não é preciso abrir o Guia: o mar aponta o caminho certo. E assim se seguiu um passeio pelas improbabilidades de Vladivostok.
Naquela urbe portuária (e Russa!) começámos por descobrir uma improvável praia de areia na curva de uma baía: ao fundo uma série de barcos atracados ou em doca seca; atrás um parque de diversões com uma verdadeira Montanha Russa e gritinhos histéricos; lá dentro, na água, uma escultura de diebuska em grande formato a arrepia-se ao banhar-se... ou estará ela arrepiada com a luta que um par de gaivotas faz por um lugar sobre a sua cabeça?
Menos provável ainda do que esta prainha foi o "delfinário" que vimos empacotado numa estrutura ferrugenta de qualquer coisa desactivada. Para além dos silvos dos golfinhos e, depois, de uma estranha bilheteira também enferrujada, nada nos faria dar atenção àquele complexo roído pelo mar.
Frente ao "delfinário", do lado-terra da alameda marginal, está um, desta vez provável, parque infantil cheio de baloiços e escorregas. Improvável era sim o material que revestia o chão de brincar-e-cair: seixos não rolados (dura simpatia Russa).
Já no regresso, tentando chegar pela marginal ao outro lado da península, atravessámos uma zona de bares em tendas plásticas. O caminho não mostrava propriamente sinais interessantes mas parecíamo-nos lógico que atalharíamos. Logo à nossa esquerda apareceram construções em tábuas de madeira azul com um típico ar balnear. Meio escondido no vão de uma porta, um russo sentado de tronco-nu dourado aproveitada os últimos raiozinhos de sol do dia. (Convém explicar que não estava "muito frio" nesta Terça-Feira em Vladivostok. O Mar tempera esta cidade mas mesmo assim estava um friozito daqueles que em Lisboa não se sentem.) Uns passos à frente e um casal dos seus 70 anos bem medidos, igualmente apanhando umas nesgas solares, lia estiraçados sobre uma cadeira de praia. Um terceiro homem aproxima-se deles. Vem de ténis, calcas de fato-de-treino e tronco-nu. "Paidiom-pa-igrate?" (que é como quem diz: bora lá jogar?) A mulher levanta-se. Tem no tronco um colete sem braços tipo "de penas" e a indumentária completa-se só com mais um par de botas até à canela. E toca de trocarem umas bolas de volei, com estilo, mestria e poderio físico.
Não tivemos tempo para pensar no que eram aquelas gentes rijas. Da direita, e em direcção ao Mar, surgiu um Russo (por certo nascido nos anos 30) de tanga preta. Com cuidadinho a descer as escadas e lançou-se ao banho numas braçadas aflitas de frio mas corajosas e sobretudos sãs! Da tal construção de madeira pintada a azul e de ar balnear saiu outro e depois outra. Com mais ou menos momentos de meditação acabaram todos dentro de água!
Satisfeitos por assistirmos a este improvável espectáculo, que não vinha no Guia, prosseguimos caminho. Os outros continuavam a jogar volei. Cruzamo-nos com o primeiro corajoso de tanga preta (continuava só de tanga mas estava no seu jogging).
O caminho não tinha saída nem dava a volta à península como pensávamos: uma vedação onde se lia "Solarium" estava em sombra pelo prédio de uma escola de dança; como barragem final e intransponível estava um recinto de exibições desportivas da armada Russa.
Voltamos uns metros para tras e subimos uma improvável escadaria em torre para chegar ao cimo da falésia. Sem Guia não nos perdemos e ainda ganhamos uma vista panorâmica sobre toda a marginal.


improvável banho de uma escultura com gaivota sobre a cabeça; improvável banho de gente humana; vista panorâmica

02 novembro 2005

43. Pequim-Harbin-Suifenhe-Grodekovo-Vladivostok

A viagem até Vladivostok (Este Longínquo) não foi um "passeio de Domingo". Saímos de Pequim na madrugada de dia 29 e só chegamos dia 31 à noite. Pelo meio andámos em 4 comboios e 1 autocarro; dormimos num quarto com paredes decoradas com baratas (6 por nós decapitadas!); rapámos um frio danado a visitar Harbin; comprámos bilhetes em chinês; passámos a fronteira com 500 russos carregados de 1000 sacos de mercadoria chinesa; e quase perdemos a paciência na alfândega porque a compostura, essa, foi-se mesmo! Aqui em Vladivostok decidimo-nos por um hotel confortável onde estamos há duas noites lambendo as feridas.
É tempo de jogar com o calendário disponível e os comboios existentes para chegarmos a Moscovo antes do dia 12 parando, tanto quanto possível, para conhecer mais um pouco da Sibéria interior. Comprámos bilhetes para Komsomolsk-na-Amure, a 27 horas norte de Vladivostok. Significa que vamos regressar pela linha BAM (Baikal-Amur mainline), uma linha que passa pelo norte do Lago Baikal repetindo apenas o caminho por nós já efectuado a partir de Krasnoyarsk.


Harbin: Igreja de Santa Sophia (igreja ortodoxa em plena China) e vendedor de batata-doce; Suifenhe: 500 russos na alfândega

ADENDA LISBOETA A 25 DE NOVEMBRO

(The Wall Street Journal) Chinese city shuts off water after accident. By Jason Dean. November 23, 2005.
A major Chinese city shut off water to residents to protect the population from possible contamination by a chemical factory accident.
Officials in Harbin, a provincial capital in northeast China, began the water shutdown yesterday, and said the extraordinary measure probably would last at least four days. Word of the move, which leaked out before the announcement, sparked panic-buying of bottled water by the city's 3.1 million urban residents.
Harbin's plight highlights the enormous environmental challenges afflicting China amid galloping economic growth. The accident that Harbin officials fear may have contaminated their water supply occurred earlier this month, after several explosions shook a chemical plant owned by a unit of PetroChina Co., one of China's biggest energy companies. PetroChina, majority owned by the Chinese government and listed on the New York Stock Exchange, had suggested in a statement after the incident that environmental damage had been contained.



a estação de comboios onde comprámos tão a custo o nosso bilhete, agora apinhada de gente em êxodo; as consequências da descarga química; as margens onde mergulhámos as mãos

Foi com uma boa dose de choque que recebemos a notícia deste desastre ambiental. Mergulhámos as mãos neste rio Songhua, agora super contaminado!
Se há algo que fica das viagens que fazemos é esta sensação de familiaridade que, independentemente da qualidade da experiência, torna os sítios por onde passamos parte de nós. Ficam arrumados algures na prateleira dos home places…E isto expressa-se nestas ocasiões.
Assim, estes relatos longínquos, habitualmente por nós racionalmente interpretados, resultam em emoções. No que isso tem de bom e de mau! No caso dos nossos leitores, serviu este desabafo para (talvez) memorizarem uma cidade chinesa de 3 milhões de habitantes, algures na Manchúria – HARBIN.


as nossas fotos de Harbin

01 novembro 2005

42. A Nova Era

Palavras de um General Russo em 1880:
"-Pequim é um monstro! -disse Camillof oscilando reflectidamente a calva. - E agora considere que esta capital, à classe Tártara e conquistadora que a possui, obedecem 300 milhões de homens, uma raça subtil, laboriosa, sofredora, prolifera, invasora... Estudam as nossas ciências [...] tem uma marinha formidável! O exercito, que outrora julgava destrocar o estrangeiro com dragões de papelão de onde saíam bichas de fogo, tem agora táctica prussiana e espingarda de agulha! Grave!"
(trecho de "O Mandarim", de Eça de Queirós)

Existirá um paralelismo com os dias de hoje?
Bom, em 125 anos, os chineses multiplicaram-se dos 300 milhões para mais de um bilião e, se na época eram um império em decadência, hoje são o país com a maior taxa de crescimento económico do mundo e, na perspectiva de muitos, os futuros lideres do séc.XXI.
Esta antevisão é perceptível a um mero transeunte atento nas ruas de Pequim. Tudo fibrilha! Que contraste com a taciturna Rússia. Uma super potência emergente e outra em submersão. Há, é claro, em ambos os países, marcadas diferenças internas de status social, mas a sensação com que se fica é um pouco esta: quem é prospero na Rússia ou é corrupto ou mafioso, ao passo que na China, há de facto "genuínas" oportunidades de proliferação económica e cultural, sobretudo para as gerações mais jovens!
A febre com que Pequim vive a organização dos Jogos Olímpicos de 2008 é bem o reflexo desta realidade. É uma fábrica em permanente laboração. Recuperam-se monumentos, constroem-se equipamentos, treinam-se atletas, faz-se nova cidade!
Parece inacreditável que isto se passe ainda sob um sistema comunista. Apesar da abertura ao sector privado e ao mercado livre, o peso da administração pública é ainda massivo. Há empregos estatais para todos os serviços possíveis e imaginários: abrir e fechar portas, recolher lixo à mão do balastro das linhas ferroviárias, obliterar bilhetes à entrada do metro, instruir os passageiros nas entradas e saídas das carruagens nas horas de ponta, etc. A classe trabalhadora organiza-se em unidades de trabalho e obedece à complicada (e histórica) burocracia chinesa. Do varredor de rua ao professor universitário todos tem que, periodicamente, reunir-se com as respectivas unidades em sessões de crítica e autocrítica, cujos relatórios seguem, para serem supervisionados, para o partido.
Pequim é paradoxal.
Por um lado Mao Tse Tung é venerado (o seu traje despojado é ainda moda popular nas gerações mais idosas) mas por outro, abundam, nos cidadãos e na cidade, sinais exteriores de riqueza ocidentalizados.
Nos média, a censura existe mas o controlo é infantil e facilmente subvertivel. Um exemplo: a última edição da revista Time foi vendida com páginas rasgadas (trazia um artigo sobre o Web Control na China), mas a sua edição on-line estava integralmente acessível.
A justiça é um meio obscuro onde a pena de morte é aplicada com ligeireza mas, passados 15 anos do massacre de Tianamen, não há manifestações de revolta interna visível e o ambiente não é, aparentemente, de opressão.
Pequim é uma das maiores cidades do planeta e sofre de muitas das mesmas doenças das suas congéneres mega-metropoles (trânsito caótico, poluição, etc). No entanto, está vacinada contra a epidemia da criminalidade urbana. A taxa é baixíssima (que diferença da sensação de insegurança em Ulaan Baatar). Como é isto possível dentro de tanta desigualdade? Será a perspectiva da pena capital dissuasora…?

"Pequim é um monstro! - disse Camillof [...]" O que lhe irá na alma?