15 dezembro 2005

55. Impressões sobre a Arquitectura Soviética

Impressões somente. Não mais do que isso. Aqui não há qualquer pesquisa ou estudo, apenas reacções epidérmicas e intuitivas a uma breve estada na Rússia e na Mongólia no Outono de 2005.
A arquitectura do período soviético (considerando as distinções que vão dos anos 30 aos anos 80 do séc. XX) está de tal modo afastada da realidade portuguesa e, em muitos aspectos, da europeia, que perturba. Distingo quatro tópicos de abordagem:

01.Urbanismo
Uma forte influência do “Modernismo – Carta de Atenas” parece caracterizar as zonas periféricas de expansão das urbes mais antigas e as muitas “novas” cidades soviéticas. O quarteirão da cidade tradicional é substituído por blocos de habitação colectiva e serviços (não sobre pilotis), separados por pracetas ajardinadas, alamedas e ruas desafogadas. Há um equilíbrio conseguido nestas relações: espaço construído/espaço vazio; verde/artificial; público/privado (neste caso…quase tudo é público). Pode ser uma opinião polémica, mas simpatizo com esta simplicidade. Há aqui uma escala humanista, apesar do ambiente, de certo modo, triste que por lá paira.
O caso do centro de Moscovo é distinto. Como já referi num post anterior, este está enormemente marcado pelo punho vigoroso de Stalin. As operações de saneamento urbano resultaram em edifícios quarteirão gigantescos (grotescos na sua maioria) e em auto-estradas urbanas completamente desumanizadas. É o paradigma da ostentação totalitária.

Kazan; Kazan; Ulaan Baatar

Moscovo: blocos na periferia; gigantes no centro
02.Arquitectura de Estado
O simbolismo soviético (materializado na estatuária, escultura, murais, etc) está inevitavelmente presente em todas as cidades Russas. A foice e o martelo, a revolução do proletariado, a figura de Lenine, ou a vitória na 2ª Grande Guerra são signos usados e abusados como caracterizadores dos espaços “nobres” das cidades. Moscovo, Vladivostok e Ulan Ude (a par de muitas outras presumo) têm mesmo uma praça pública perfeitamente equipada para as famosas paradas militares: bancadas monumentais e marcações no pavimento por onde os “tanques e os mísseis” desfilam.
A tendência para a monumentalidade e a consequente importação dos modelos clássicos são o tema forte dos edifícios de Estado (ministérios, municipalidades, etc). Esta interpretação estética é normalmente grosseira, não tanto ao nível das proporções, mas sobretudo na definição construtiva – betões, rebocos, metais, vidros, madeiras – são materiais rusticamente aplicados.
Desafortunadamente escolheu-se Grande em vez de Belo, Bruto sobre Delicado; embora por vezes sejamos surpreendidos com algo “fora do mapa”…

Barabinsk; Vladivostok; Moscovo: Praça Vermelha

Moscovo; Moscovo; Vladivostok

Ulaan Baatar

03.Habitação Colectiva
Standard é a adjectivação predominante. Os blocos habitacionais do tal “urbanismo soviético” aparentam volumetria, dimensões dos vãos, e organização interior semelhantes entre si (curiosamente a entrada das habitações é sempre feita pelas traseiras nas tais pracetas ajardinadas; as frentes estão reservadas ao comércio e serviços).
Construtivamente, o conceito é de qualidade e bem adaptado ao rigor do clima – estrutura robusta de betão, paredes de tijolo maciço de alta inércia térmica, janelas de madeira de caixilharia dupla, etc. O problema é a execução técnica que é péssima. O rigor geométrico é um terror – os degraus são, invariavelmente, um de cada tamanho por exemplo. Descuido? Falta de brio profissional? De fiscalização? De formação técnica? Não sei…. Li algures que o processo de industrialização russo impulsionado pelos Soviéticos eclodiu à pressa e, portanto, com fracas bases em operariado qualificado.
Refiro ainda o conceito de espaço comum, que aqui se afasta um pouco do que nos é habitual. Muitos destes apartamentos, para além de serem construídos pelo Estado e consequentemente alugados aos residentes, eram (e muitos ainda são) comunitários. Ou seja, os habitantes ocupam um quarto e partilham áreas comuns dentro do apartamento (instalações sanitárias, cozinhas e zonas de estar). Isto não invalida que estas e as outras áreas comuns (átrios e escadas interiores) não estejam quase que ao abandono. Faço um paralelo “irónico” com a ideia que tenho de alguns edifícios de habitação colectiva de Nova York, em que estas zonas interiores comuns são negligenciadas de cuidado (para não dizer vandalizadas), mas que, ao abrirmos a porta do apartamento, o luxo nos invade!
Destarte, e em resumo, penso que neste campo impera um funcionalismo e uma racionalidade que não posso deixar, mais uma vez, de valorizar.

Dalandzagad; perto de Ulan Ude; perto de Vladivostok

04.Serviços Comunitários
Na época soviética não havia apelo ao consumo. Daí o comércio dispensar montras. Uma pequena tabuleta por cima de uma porta opaca bastava para anunciar: loja de roupa, mundo das crianças, restaurante, hotel. Esta relação com a rua, ainda está muito presente, principalmente na Rússia mais profunda (em Moscovo ainda se vê sobre o néon da megastore Beneton um dístico: loja de roupa). Para o comum transeunte, por um lado é agradável, já que (por comparação com a China) não somos bombardeados com luzes saltitantes e megafones aos berros; mas por outro, torna-se constrangedor aceder a esses sítios que nada nos mostram do interior…para um estrangeiro não é tarefa fácil identificar um café na Rússia mais Siberiana.
Ao contrário do conceito dos State Department Stores (antigos centros comerciais estatais agora, na sua maioria, vendidos às multinacionais privadas), os Mercados tradicionais de produtos alimentares e roupa são muito idênticos aos nossos. Diferenciam-se pela temperatura interior. São, felizmente, aquecidos. Todavia, é de referir que nos menos 16 graus Célsius de Tynda se multiplicavam as tendas e os quiosques exteriores ao redor do mercado.
Talvez o elemento mais distintivo das cidades soviéticas seja a central termoeléctrica. Das grandes metrópoles como Moscovo ou Ulaan Baatar até às pequenas aglomerações urbanas do deserto de Gobi ou da Sibéria interior, todas são servidas de electricidade, água quente e aquecimento “centralizados”. Estes serviços são distribuídos através de característicos pipelines que nascem desses gigantes industriais implantados, na sua maioria, bem próximo dos centros urbanos. Consumindo carvão ou diesel, são chaminés que bufam, sem parar, um fumo espesso que pesa sobre a qualidade do ar (para não falar na libertação de CO2 na atmosfera). Não admira que a Rússia fuja do protocolo de Quioto. Não se adivinha fácil reformar estas indústrias tão poluentes e, ao mesmo tempo, tão necessárias ao suporte de vida naquele clima extremo.
É complicado tomar uma posição sobre este assunto. Os sovietes, dentro do caos ecológico que resultou das suas acções, tiveram o mérito (ou o demérito…não sei) de humanizar regiões, que até aí eram impróprias para consumo humano. O que é facto é que estas estruturas, apesar dos esforços de manutenção que lhes têm prolongado a vida, algum dia vão ceder. E aí como será? Se não houver capacidade económica de renovação…é o abandono?...êxodo?

Tynda

Ulaan Baatar; Moscovo; Moscovo

Em resumo
Soviete em russo significa conselho. Conselho dos delegados dos operários, camponeses e soldados… As relações entre a arquitectura e os regimes políticos foram e são, em tantos casos, muito estreitas. Marcam épocas de uma maneira única. A arquitectura é um registo histórico que, à posteriori, acabamos sempre por valorizar...mesmo que por agora ainda as desprezemos.

perto de Arvaikheer; radio telescópio perto de Vladivostok; Tynda: estação de caminhos de ferro

3 comentários:

Anónimo disse...

Olá Quico. Não imaginava que este blog ainda mexia! Está a ficar amplo, assim tipo Rússia, China, Mongólia, esses países assim que não cabem num aguidar, mesmo que seja daqueles grandes.

Não entendo nada de Arquitectura. Sei que a palavra em português começa com um «a», acaba noutro, e pronto.

Mas não resisto a comentar isto que disseste: «A arquitectura do período soviético (considerando as distinções que vão dos anos 30 aos anos 80 do séc. XX) está de tal modo afastada da realidade portuguesa e, em muitos aspectos, da europeia, que perturba.»

Sabes que no espaço de 3 meses apanhei com dois estrangeiros a residir em Portugal que compararam Lisboa a uma cidade «soviética», num caso, e «tipo cidade da Europa de Leste» noutro? (Isto por causa das cidades dormitório que a envolvem).

Um é inglês, trabalha em Lisboa há sete anos, e é casado com uma portuguesa. Outro é holandês (acho) e trabalha cá por castigo não sei há quanto tempo.

Coisas...

Votos de Bom Natal!

Anónimo disse...

Bem o diz um provérbio mongol: “À noite todos os gatos são pardos e aos olhos informáticos todos os subúrbios parecem iguais” !!

Anónimo disse...

Reacção abrupta à arquitecto cagão:
Pois é Paulo, cá p’ra mim esses teus amigos, ao contrário de ti, nem sequer sabem as letras todas da palavra ARQUITECTURA…

Reacção de insegurança:
Gaita!… Com esta é que me lixaram!... Como é que agora defendo a minha honra?...Contra argumento ou assumo a fragilidade?

Reacção racional:
Realmente, desse ponto de vista há semelhanças. Confesso que enquanto procurava fotos que ilustrassem o que tinha escrito, me interrogava a mim próprio: - isto não é nada diferente de uma Amadora ou Seixal - … Resta-me, como salvação, afirmar que a diferença não está nas aparências (esta é boa, já os lixei!), mas sim no que está para além do imediato, do visível (esta é ainda melhor)…

Agora a sério, talvez exista um certo equilíbrio construído/vazio/verde que na periferia Lisboeta acho que está mais desproporcionado…

Um abraço de Bom Natal, Paulo, e continua a comentar, que a gente quer é polémicas!