13 dezembro 2005

54. Concluindo

Passaram quatro semanas sobre o nosso regresso e, desde aí, tenho-me pressionado a postar este “remate” pessoal. A princípio, ao ver passar o tempo, pensava estar a ganhar distanciamento e reflexão. Agora, já estou tão preso às tarefas portuguesas (laborais e não só) que quero apressar a digestão e o despejo, antes que os paladares se evaporem…

Pessoalmente não tinha, ao contrário da Jota, sonhos expectantes acerca deste empreendimento. Talvez por isso não tenha sofrido do mal da desilusão, do qual que ela deixa transparecer um pouco no seu balanço. Quando procuro um estado de espírito que resuma esta experiência, penso que sinto o mesmo de outras viagens que fiz. Penso que ganhei riqueza. Não da que se ostenta em vestes ou adornos (realmente podia ter trazido um casaquito de peles da Sibéria…), mas da outra, da interior, da espiritual! (céus, que despudor de expressão!). Contrariando o estilo esotérico da última deixa atrás empregue, prefiro re-frasear: acho que fiz um upgrade na minha base de dados.

Não raras vezes lamento a minha fraca capacidade de armazenamento cerebral, ou, por outras palavras, a minha memória é como um tacho com fugas que perde muita da água que lá é depositada. Contudo, o que é facto é que a água das viagens é dirigida para um tanque (subsidiário do tacho) “estanque até ao infinito”… Surpreendo-me a mim próprio quando remonto a memória dessas ocasiões. Talvez seja isso que procuro quando viajo, dirigir mais água para esses tanques que nada perdem…

Deixando estas visões altamente egocêntricas, debruço-me agora sobre os nossos actos de altruísmo. “Oops”! Não vejo grandes méritos nesse campo. Não fizemos caridade. Aos pobres nómadas mongóis oferecemos vodka, cigarros e rebuçados (que tragédia de oferendas!). Fomos, por mais que nos custe dizer, turistas... e destes, o melhor que se pode dizer é que contribuem com alguma coisa para o pib dos países visitados. Mas não deveria ser o sector turístico uma parede mestra da economia mundial neste período de globalização? Turismo por oposição a terrorismo não me parece mal… e nem são coisas que não se “toquem”.

Agora que terminei com estas sentenças pouco específicas desta viagem em particular, prefiro finalizar esta conclusão com uma série de flashes mentais soltos, uma desgarrada resultante da (des)organização do tanque de retenção de memórias Rússia/Mongólia/China:
(…) Sou um privilegiado, mas abomino mordomias (…) A rotina de viajar rapidamente se nos entranha, todavia não o gostaria de fazer durante muito tempo seguido (…) No mercado de casacos de pele em Moscovo, um cliente Kazac experimentava um modelo ao espelho enquanto o vendedor o assistia. Os gestos de um e de outro pareciam convencionais, mas impressionaram-me sobremaneira – bruscos, teatrais, agressivos, assustadores (…) Na 1ª noite com uma verdadeira família nómada, quando estávamos todos (sete pessoas alinhadas em paralelo umas às outras) a tentar adormecer no ger ainda quente; ouvíamos, como que um embalar, os sons calmos de uma conversa de fim de dia entre o casal idoso anfitrião (…) Ai a força dos nómadas, como é possível suportar tanto frio de noite, e nós só ainda estamos a meio do Outono (…) Ai a força dos animais, como é possível suportar tanto frio de noite sem um abrigo, e tão parco que é agora o pasto (…) Nos templos Budistas a entrada é livre, mas somos pressionados a fazer doações monetárias. Provoca-me desagrado e estranheza. Tanta devoção ao culto figurativo da imagem do Buda é o caminho para a iluminação? Onde está o despojamento que levou Sidharta a abdicar do trono da antiga Índia? (…) Grande Muralha. Doidos, é de doidos! É de arrancar os cabelos! Há, no entanto, uma ironia interessante - esta arma de guerra nunca serviu este fim, foi principalmente uma via de comunicação, uma arma mais pacífica (…) Que vergonha sinto agora de ter feito semelhante proposta a uma pobre “mercadora” Mongol na Rússia. Influenciado pelos hábitos chineses, tentei regatear com ela o câmbio de 5000 tugriks. Enganei-me nos dinheiros e fiz finca-pé por um valor 10 vezes maior que o real (…) Houve momentos em que o alarme das doenças espreitou. Nessas alturas, estar em viagem torna-se um empecilho. Mas há que reagir sempre, seja à procura de medicamentos, seja na gestão dos esforços e dos descansos (…) Gostei de ser contributor no foradomapa. Obrigou-me a estudar, a pensar e a escrever…espero não ter sido uma maçada (…)


Sibéria; Gobi; chinesa cuja profissão é acompanhar visitantes da Grande Muralha (na secção menos turística de Jinshanling, a 110 km de Pequim) durante kilómetros a fio, para desta forma lhes ganhar confiança e vender uma ou duas ocasionais garrafas de água...por dia

3 comentários:

Anónimo disse...

a memória é selectiva e muito pessoal...lembro-me agora de um professor de faculdade que dizia: «...em vez de assitirem às minhas aulas deviam é estar a viajar....» mais ou menos assim, não me lembro ao certo ;)

Anónimo disse...

Não me lembro nada dessa máxima ter saído da boca de algum prof! Devo ter faltado a essa aula. Que visionário! Se tivesse assistido talvez tivesse começado mais cedo a pedalar… Quem foi a peça?

Anónimo disse...

foi o Simões :D no meu 4ºano